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O problema do feminismo islâmico

Dezembro 4, 2018

Este é um texto de opinião que surge do confronto com várias leituras ( Abu-Lughod, Moghadam, Mahmood) e debates nas aulas acerca da condição e experiência das mulheres em contextos islâmicos.

A corrente que pretende não só conciliar o Islão com as pautas feministas, mas também usar o próprio Islão como motor de uma consciência emancipatória, através de leituras do Alcorão sob uma luz alternativa, onde sobressaiam as questões de igualdade de género e agência feminina, é comummente chamada de feminismo islâmico. Posições diversas orbitam esta corrente: desde considerá-la uma contradição em termos ( ou se é muçulmana ou se é feminista) a aplaudi-la como via que se demarca do feminismo anglo-americanizado e hegemónico, passando por enquadrá-la simplesmente numa visão mais ampla, como parte constituinte de um feminismo global.
O maior elogio a atribuir ao feminismo islâmico, penso, prende-se com o facto desta proposta vir descolonizar o feminismo, dissociando libertação feminina do liberalismo ocidental. Não olhar com benevolência para as militantes do feminismo islâmico, é começar a perceber porque é que mulheres afegãs ( envoltas na narrativa da salvação, aquando a invasão do seu país), olham para as mulheres da República Islâmica do Irão com admiração, e quem sabe, como inspiração na condução de seus difíceis destinos (Abu-Lughod, 2002). O facto de as mulheres muçulmanas não invejarem as mulheres ocidentais também pode servir para colocar a ideia romantizada e cristalizada de liberdade feminina no Ocidente em causa, e repensarmos as nossas próprias lutas, que estão tão longe de acabar.
Porém, não retirando os louros das conquistas do feminismo islâmico, quero apresentar uma das vertentes que o torna problemático. O ano passado, assisti a uma palestra na faculdade sobre energia nuclear, como faca de dois gumes no jogo político, conduzida por um jovem intelectual iraniano. Ele apontava o dedo aos EUA, que sob o pretexto de uma ameaça nuclear, atrasavam o Irão no caminho da democratização, apesar desta estar a ser conseguida. Uma aluna na plateia não se conteve, e interrogou-o (e bem) sobre que tipo de democracia obrigava as mulheres a cobrirem-se, mostrando (menos bem)  imagens antes e depois da revolução iraniana para apoiar o seu argumento. O rapaz ficou visivelmente incomodado, respondendo que não se pode acreditar em toda a propaganda que encontramos na internet ( até porque a montagem por ela revelada era dificilmente verossímil, pelo menos para um historiador ou antropólogo). De seguida, como forma de se defender da crítica feita, começa a despejar números que Moghadam corrobora, acerca das mulheres participando nos órgãos políticos, incluindo nos jurídicos, e nos orgãos de comunicação, apresentando igualmente a alta taxa de mulheres que frequentam o ensino universitário no Irão.

Neste comentário, o feminismo islâmico revela-se. Porque se o feminismo é um grito contra estruturas de poder ( económico, político, cultural… configuradas em instituições como o Estado, o mercado, a família, a religião…) que historicamente oprimiram a mulher, a pergunta que testa a “qualidade” desse feminismo não pode nunca ser: quantas mulheres ocupam cargos estatais? Quantas se tornaram CEO de uma firma e quantas são juízas? Quantas estudam em faculdades? A pergunta a ser feita deve antes ser: Esse feminismo, que coloca mulheres no poder, serve as nossas mães e avós? Serve a mulher que limpa as nossas faculdades? Serve a mulher que vive na periferia ou num interior ruralizado?

Nesse aspecto, como nota Moghadam, um paralelismo com o feminismo liberal não é descabido, o que nos leva a concluir que a palavra islâmico em feminismo islâmico é de certa maneira um dog whistle¹, pois acreditando que esta discussão é apenas sobre se a via religiosa é tão válida como a secular no que concerne ao feminismo, aceitamos o reformismo como via possível, quando este não questiona as bases de uma estrutura inerentemente violenta. Considero-me uma feminista e considero-me uma crítica do feminismo liberal. Temo padecer de etnocentrismo ao olhar com desconfiança para o que pode significar feminismo islâmico. Mas se o relativismo é também uma manifestação de racismo, não devo compadecer-me deste tipo de feminismo, até porque ele se abriga num conceito guarda-chuva, igualmente discutível, que é o de feminismo global. Esse é descrito como uma estrutura multifacetada, capaz de «ultrapassar as diferenças ideológicas e de classe, acordando as medidas necessárias para a igualdade e o empoderamento das mulheres»(Moghadam, 2002). Fazer tábua rasa dessas diferenças, sobretudo as de classe, não será pois atrasar a luta pela igualdade das “desempoderadas”?

(Bea)

1- estratégia de comunicação em que um sentido de uma dada mensagem é captado pelo público geral, no entanto através da mesma mensagem, outro sentido encoberto ( e por vezes perigoso) é transmitido